14 de junho de 2025
Campo Grande 19ºC
slogan pmcg refis
VANDER

Travessias Cotidianas

Movimentar o pensamento pelo som

Hoje a travessia será musical: o que você anda ouvindo? 

Digo por mim, atravessada pela MPB, direto me ecoa um samba.

Aparece o grito: negra sim! Poder em si. 

Vou falar da força da música. 

O ar-saber-superar-somar-ser-som. 

 

Não tem limite a palavra. 

Não tem previsão o humano, mas tem precisão: o Milton Nascimento. 

Esse que agora roda mundialmente sua turnê final denominada: A última sessão de música. 

 Que nome mais importante! 

Seja pela boca ou mãos, corpo e som têm uma íntima relação. O sujeito que significa e, na melodia, expressa emoções com o uso de seu corpo. Milton decidiu fazer uma parada: escutou seu corpo-emoção. 

Propriamente, Freud postulou essa peculiar relação da arte e com as emoções (de morte ou de vida), e, sendo possível, estabelecer exercícios do inconsciente. 

Nesse sentido, tratamos aqui do sintoma social que é o racismo, provocado também pelo inconsciente. Apresentando significados da música no caminhar da letra para provocar pensamentos. Haja vista que as práticas racistas são assombrosas demais e a potência do resistir humano se faz presente, com a música, podemos deixar a luta mais leve e não menos real. 

Do racismo como sintoma social traçamos a sutileza que podemos obter da arte sonora. Música e ser humano, um princípio desde a pré-história. Música: palavras, sons e ritmos... Formas que atingem pontos cerebrais ainda não categorizados combinam com o inconsciente que precisa de técnica e atenção para o “conectado” (chistes, lapsos, sonhos…).

Apesar de pouco falar sobre a musicalidade, coube também a Lacan trazer uma abertura para a música na  psicanálise, principalmente ao situar a voz como objeto pulsional de modo a inseri-la no rol dos objetos primordiais. Chegou até a perceber a importância disso quando, no Seminário 20, advertiu que "seria preciso, alguma vez, falar da música; não sei se jamais terei tempo" (LACAN, 1972-1973/1982, p. 158). Infelizmente não teve esse tempo, mas a oportunidade nos cabe.

Energias psíquicas, constantemente pulsões projetadas, descarregadas... O eu que imagina cria o discurso de um inconsciente reverberado no musical. Músicas são linguagens. Uma melodia que carrega experiência, a letra escolhida apresenta algo de familiar do país tupiniquim, o real de ter sido o último das Américas a abolir o processo de escravização, e os traumas vão sendo digeridos, reformulados e combatidos.

Aqui propomos uma emancipação pelo som, seja para balançar a cabeça dos não negros, seja para aquecer o corpo-mente da gente preta. Possibilitando assim que os sujeitos entendam como esse sistema racial funciona e encontre caminhos para romper. Em acordo com Fanon (2008), acreditamos que identificar o racismo não é algo de mistério ou dificuldade, pois este está posto; a questão é querer ver ou não. Do racismo que aparece a partir do século XIX, temos raças, e umas são pensadas, outras não. 

Vamos ao som! 

De uma violência diária exposta e um tanto de energia envolvida é preciso recarregar ou expulsar. E de onde podemos buscar essa força? Uns acreditam em Deus ou outros Deuses. Elis Regina, cantora brasileira, considerada como a grande intérprete de todos os tempos, dizia que, se Deus cantasse, teria a voz de Milton Nascimento. Assim, manifestamos um canto completo que na voz desse sublime trovador movimenta estruturas e forma forças subjetivas. Colocar um fone e sentir esse som é um experimento elevado de sentidos e cada um diz seu significado. Uma composição perante histórias negras que tem o nome de “raça”.

Lá vem a força, lá vem a magia

Que me incendeia o corpo de alegria

Lá vem a santa maldita euforia

Que me alucina, me joga e me rodopia

Lá vem o canto, o berro de fera

Lá vem a voz de qualquer primavera

Lá vem a unha rasgando a garganta

A fome, a fúria, o sangue que já se levanta

De onde vem essa coisa tão minha

Que me aquece e me faz carinho?

De onde vem essa coisa tão crua

Que me acorda e me põe no meio da rua?

É um lamento, um canto mais puro

Que me ilumina a casa escura

É minha força, é nossa energia

Que vem de longe prá nos fazer companhia

É Clementina cantando bonito

As aventuras do seu povo aflito

É Seu Francisco, boné e cachimbo

Me ensinando que a luta é mesmo comigo

Todas Marias, Maria Dominga

Atraca Vilma e Tia Hercília

É Monsueto e é Grande Otelo

Atraca, atraca que o Naná vem chegando 

(NASCIMENTO & BRANT, 1976).

Essa toada de Nascimento e Brant funciona como uma cantiga, uma mistura de ritmos que lembra uma roda em constante movimento, e que nos segundos sonoros vão aparecendo outros componentes para fazer o conjunto celestial. 

Milton chama para trabalharmos em conjunto, o que nos apresenta o jogo da vida, melodia forte com vozes que se entrançam para fazer dessa música uma estrutura em versos que trazem respostas para o enfrentamento do dia a dia do sujeito negro, e abrimos, de todos os sujeitos. Raça aparece como energia, força, sabedoria, luz, saúde e dança, formas propícias na existência do real.

Não podemos negligenciar que nesta canção temos: "É Seu Francisco, boné e cachimbo me ensinando que a luta é mesmo comigo”. Uma profundidade psicanalítica, a responsabilidade de si, ainda mais, esse destaque demonstra uma experiência religiosa afro-brasileira. De um ado construído por repressão, luta, fuga, criação e outras formas não nomináveis. A fé de uma matriz negra apresenta condutas que movem o sujeito, sendo que não é possível caracterizar uma religião legítima, mas são vivenciadas cotidianamente aquelas que são aceitáveis. 

Afinal: O que não dá mais pra aceitar? 

Como se descaracterizar? 

Vamos lá, 

1,2,3: Som…

 

Indicação:

Lista de música do Spotify: Significado, música e negritude

 

Referências:

LACAN, J. (1972-1973/1982) O Seminário livro 20, Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba.

NASCIMENTO, M.; BRANT, F. (1976). Raça. Disponível em: https://www.letras.mus.br/milton-nascimento/843341/. o em: 03 nov 2020.

 

Autora: Karoline M. de Oliveira (Karô Castanha)

Psicóloga - CRP 14/06647-2

Fotografia: Rebeca Moreira

Reportar Erro
MS Noticias no Google News

Mais Lidas

VANDER
Percorrendo a história do MS, espetáculo 'Andanças' estreia em Nova Andradina
MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS
há 4 horas

Percorrendo a história do MS, espetáculo 'Andanças' estreia em Nova Andradina

Homem grava vídeo desafiando delegado: "Tira a farda e vem pra porrada"
ABUSADO
há 15 horas

Homem grava vídeo desafiando delegado: "Tira a farda e vem pra porrada"

Menina de 6 anos aciona polícia ao ver pai espancar mãe
190
há 15 horas

Menina de 6 anos aciona polícia ao ver pai espancar mãe

VÍDEO: Ônibus atropela duas crianças em bicicleta; uma morre e outra está internada
TRAGÉDIA
há 15 horas

VÍDEO: Ônibus atropela duas crianças em bicicleta; uma morre e outra está internada

Mato Grosso do Sul sediará evento para debater Estratégia Brasil 2050
Política
há 16 horas

Mato Grosso do Sul sediará evento para debater Estratégia Brasil 2050

Luana sai para comprar pão e é morta a facadas pelo ex, José
FEMINICÍDIO
há 16 horas

Luana sai para comprar pão e é morta a facadas pelo ex, José